quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dica de Livro da JMatos Bebidas: A Viúva Clicquot, a história do império da Champagne


Leia abaixo trecho do livro "A Viúva Clicquot" (304 páginas, ed. Rocco), resultado de pesquisa da historiadora Tilar J. Mazzeo sobre a vida de Barbe-Nicole Clicquot Ponsardin, a mulher por trás da marca de champanhe mais famosa do mundo. 

O que os habitantes da região da Champagne se lembravam do verão de 1789 eram as ruas calçadas de pedras de Reims ressoando com o gritos da multidão enraivecida clamando por liberdade e igualdade. A Revolução Francesa havia começado, embora ninguém ainda usasse esse termo para descrever um dos eventos mais monumentais da história da civilização moderna. A democracia havia criado raízes nas colônias da América do Norte apenas uma década antes e uma nova nação emergia da guerra pela independência americana, auxiliada pelo poder militar e econômico da França, um dos reinos mais antigos e poderosos do mundo. Agora, a democracia chegava à França. Mas seu início foi brutal e sangrento.

As meninas do convento real de Saint-Pierre-les-Dames, junto ao antigo centro de Reims - uma cidade de grande atividade comercial, com talvez 30 mil habitantes, no coração da indústria têxtil francesa e apenas 140 quilômetros a leste de Paris -, pouco tinham a ver com esse mundo maior, da guerra e da política. Dois séculos antes, Mary, rainha da Escócia, havia sido aluna na abadia desde a tenra idade de cinco anos, sob os cuidados de sua tia, a nobre abadesa Renée de Lorraine. Assim como Mary Stuart e sua nobre tia, as outras meninas do convento católico provinham geralmente da aristocracia. Elas passava dias aprendendo as graciosas artes apropriadas às ricas filhas da elite: bordado, música, passos de dança e orações. O pátio da clausura ecoava os passos leves e o roçar dos hábitos das freiras movendo-se em silêncio pelas sombras. O jardim era fresco e acolhedor mesmo no calor do verão. 

Os pais mandavam as filhas a Saint-Pierre-les-Dames para que tivessem uma educação privilegiada e em segurança. Mas em julho de 1789, uma abadia real era provavelmente o lugar mais perigoso para essas meninas. Durante muitos séculos, a nobreza e a Igreja haviam esmagado os camponeses com impostos exorbitantes e, de repente, naquele verão, ressentimentos de longa data finalmente explodiram numa aberta luta de classes que mudou a história da França. Velhas contas foram acertadas de maneira terrível. Era apenas uma questão de tempo para que as freiras e as meninas, filhas da elite urbana, se tornassem alvo dos ataques populacho. De Paris, chegavam histórias de freiras violentadas e ricos assassinados nas ruas. Agora o vinho fluía das fontes públicas e as risadas e os festejos do povo de Reims eram cada vez mais febris.


Por trás de janelas fechadas, enclausurada entre as paredes reais de Saint-Pierre-ler-Dames, uma dessas meninas não saberia que o mundo e o seu futuro estavam sendo transformados até que a multidão chegasse às portas da abadia. Barbe-Nicole Ponsardin tinha 11 anos quando a revolução começou. Era uma menina miúda e séria, de cabelos dourados e grandes olhos cinzentos, filha mais velha de um dos comerciantes mais ricos e importantes da cidade, um home da alta burguesia que sonhava elevar sua família à aristocracia. Por isso, ele colocara a filha no prstigioso convento real para que fosse educada junto com filhas de príncipes e de senhores feudais.


Agora as ruas de Reims se agitavam com a ira da multidão e parecia que Barbe-Nicole teria o mesmo destino de suas colegas aristocratas. Todas as lojas estavam fechadas e os campos, desertos. No centro da cidade, na mansão da família da rue Ceres, junto à sombra da grandiosa catedral, seus pais, Ponce Jean Nicolas Philippe e Marie Jeanne Clémentine Ponsardin, ou mais simplesmente Nicolas e Jeanne Clémentine, estavam apavorados. Ainda que houvesse um meio de enviar uma carruagem pelas ruas de Reims para buscar Barbe-Nicole, essa manifestação de riqueza e medo serviria apenas para demonstrar privilégios e aumentar os riscos.


Sua última esperança foi depositada na costureira da família, uma mulher humilde mas de coragem extraordinária. Chegando à porta do convento com um pequeno embrulho de roupas, evitando ser observada, ela sabia que a única maneira de fugir com uma rica herdeira pelas ruas da França revolucionária era o disfarce. Vestiu a menina com roupas de camponesa pobre e saíram depressa. A túnica áspera deve ter provocado coceira em Barbe-Nicole, e ela certamente tropeçou em seus primeiros passos nos duros tamancos de madeira, tão diferentes dos macios chinelos de couro que costumava usar. 

Rezando para não chamar atenção, chegaram rapidamente às movimentadas ruas de Reims. Ninguém notaria uma costureira e uma pequena camponesa, mas a menina educada em convento, filha de um líder burguês, um homem que havia participado da coroação do rei na década anterior, seria alvo fácil para o rancor da multidão. Pior aconteceria com alguns daqueles que Nicolas e Jeanne Clémentine haviam recebido nos esplêndidos salões da residência da família, nas longas noites de verão anteriores à revolução. 

Na saída do convento, as ruas eram um mar vermelho vivo, coalhado de homens com barretes frígios - símbolo clássico da liberdade outrora usado por escravos libertos em antigas democracias - que entoavam conhecidas marchas militares com novas letras. À distância, ouvia-se um som de tambores e das solas duras de sapatos que golpeavam o pavimento e ecoavam nas fachadas de pedra dos grandiosos edifícios de Reims enquanto os homens se organizavam em milícias improvisadas. Por toda a França, temia-se uma invasão iminente por outros grandes monarcas da Europa, que reuniam tropas para esmagar o levante popular que eletrificava as massas no continente inteiro. 

Passar correndo por aquelas ruas caóticas deve ter sido aterrador para a menina. Por toda a parte ouvia-se a gritaria dos homens que se reuniam. Passaram rapidamente pela multidão. Talvez, naquela turba de homens irados, algum deles tenha lançado a Barbe-Nicole um olhar perplexo de vago reconhecimento. Talvez ela tenha visto alguma das muitas atrocidades da revolução, o vandalismo, os espancamentos. Quem viveu aquele dia teve uma experiência que jamais esqueceria.

Podemos apenas especular sobre os pequenos horrores daquele dia que ficaram em sua lembrança. E jamais saberemos o que aconteceu depois. Apenas um contorno mais geral dessa história dramática sobreviveu como lenda familiar. Temos outro fato: depois da fuga, nos primeiros dias da revolução, a costureira escondeu a menina no pequeno apartamento em que morava, sobre sua loja, não longe de uma pracinha escura no subúrbio do sul de Reims, onde ainda restam alguns prédio do século XVIII. Muito pouco da cidade sobreviveu aos bombardeios da Primeira Guerra Mundial, mas, olhando par aquelas estruturas meio desmoronadas, me pergunto se não teria sido um daqueles apartamentos com cortinas de linho desbotadas que Barbe-Nicole assistiu à mudança do mundo. A pracinha ainda hoje é conhecida como Place des Droits de l'Homme, Praça dos Direitos do Homem.

Passados mais de duzentos anos, de relatos variados, ainda hoje alguns questionam se foi Barbe-Nicole ou sua irmã quem passou por aquela dramática escapada pelas ruas da cidade sob as garras da revolução. Mas nos poucos documentos mais antigos que registram detalhes de sua vida pessoal, como uma biografia da família, datada do século XIX, e escrita por um historiador local, e uma rápida sinopse de autoria da esposa do presidente da companhia em meados do século XX, a fuga foi a aventura central da infância de Barbe-Nicole. 

Na verdade, esse relato é a única história que restou de sua infância. Afora as linhas muito gerais de seu nascimento e filiação, nada restou da menina Barbe-Nicole. Esse silêncio pode ser a parte mais importante de sua história. Tal como outras meninas de famílias privilegiadas e distintas daquele tempo, ela deveria ser invisível. Teria levado uma vida sossegada, sem nada de excepcional, numa cidade pequena do interior da França. Teria seus dias preenchidos com as obrigações de esposa, com as necessidades dos filhos e dos pais idosos. Teria passado horas ocupada com vestidos bonitos e planejando jantares para convidados. Teria vivido os sucessos e as tragédias da vida cotidiana. Se tudo tivesse ocorrido conforme os planos, Barbe-Nicole teria vivido e morrido em relativo anonimato.

Mas sabemos que não. A revolução, que acabou por transformar todo o tecido social e econômico da França, é em parte a razão de sua história de vida ter tomado uma direção tão inesperada. Toda política é local, mesmo em meio a grandes eventos mundiais. Como sempre costuma acontecer, no caso da pequena região rural do nordeste da França, conhecida como Champagne, os vinhedos tiveram papel no torvelinho daquele verão.

Fonte: Portal Uol 

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