segunda-feira, 2 de abril de 2012

A salvaguarda da discórdia, a polemica do vinho!

Por Alexandre Lalas com reportagem de Rogério Rebouças



A comunidade internacional já começou a reagir à possibilidade de aplicação de salvaguardas contra o vinho importado pelo governo brasileiro. Após uma entrevista do produtor português António Soares Franco garantindo que o “Brasil entrou em uma guerra comercial e irá perder”, agora são os franceses que se mobilizam contra o projeto que pode resultar em aumento de impostos ou sistema de cotas para importação.



O Comitê Interprofissional das Denominações de Origem (CNIV) e a Federação dos Exportadores de Vinhos e Espirituosos (FEVS) alertaram o ministro do Comércio Exterior e o Comissário Europeu oficialmente sobre as medidas protecionistas em estudo no Brasil. Novo encontro com o secretário do ministério do Comércio Exterior, Pierre Lellouche está previsto pra próximos dias. A salvaguarda e a ameaça de aumento de impostos para os vinhos e espumantes são os temas da pauta.



Uma fonte ligada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) disse ao Wine Report que é muito provável que o assunto chegue, ainda esta semana, a Bruxelas. Segundo a mesma fonte, caso a aplicação da salvaguarda seja aprovada, é de se esperar que a União Europeia adote medidas de retaliação a produtos brasileiros. Carne e soja podem ser os alvos.




Entenda o caso:
 O pedido de aplicação de salvaguardas para o vinho brasileiro foi protocolado junto ao MDIC em julho de 2011 e teve como peticionários o Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, em conjunto com a União Brasileira de Vitivinicultura –UVIBRA, a Federação das Cooperativas do Vinho – FECOVINHO e o Sindicato da Indústria do Vinho do Estado do Rio Grande do Sul – SINDIVINHO. O pedido de investigação sobre a aplicação ou não da salvaguarda foi aberta em 14 de março. No dia seguinte, com a publicação da Circular Nº 9 no Diário Oficial da União, a reação do mercado de vinhos foi imediata.

Na mesma manhã, o Wine Report publicou um editorial intitulado Basta! (clique aqui para ler), onde conclamava os consumidores a um boicote contra as vinícolas que apoiavam o projeto e iniciou um abaixo-assinado contra a medida (clique aqui para assinar). Quase ao mesmo tempo, jornalistas, sommeliers, donos de restaurantes, importadores, lojistas, atacadistas e consumidores se manifestaram contra a medida. Mesmo alguns pequenos produtores gaúchos vieram a público para marcarem posição contra a aplicação da salvaguarda, e, ao mesmo tempo, para cobrarem outras medidas mais pertinentes para aumento da competitividade do vinho nacional. Entre as vinícolas que se posicionaram contra o projeto estão Cave Geisse, Vallontano, Angheben, Chandon, Don Abel e Adolfo Lona.


Após a repercussão negativa, o IBRAVIN publicou nota oficial sobre o assunto (clique aqui para ler). Dono da maior importadora do país, o empresário Ciro Lilla (Mistral e Vinci) também se manifestou, em uma carta aberta, sobre o assunto (clique aqui para ler). A reação popular contra a salvaguarda fez com que a vinícola Salton, uma das que forneceram dados para o MDIC, pulasse fora do barco e enviasse nota oficial se posicionando contra a medida. Em uma tentativa de preservar os produtores nacionais do boicote que ganha força e adeptos, o IBRAVIN declarou que “nenhuma vinícola brasileira, de forma isolada, deve ser responsabilizada pelo pedido”. Mesmo assim, o estrago na imagem de produtores como Miolo, Casa Valduga e Dal Pizzol já estava feito.
Ainda na semana passada, a chef carioca Roberta Sudbrack anunciou que retirava da carta do restaurante dela, os rótulos das vinícolas que apoiavam a aplicação da salvaguarda. Também no Rio, o Aprazível, um dos restaurantes que mais apoiaram o vinho nacional, tomou a mesma atitude. O Oro, de Felipe Bronze, também decidiu aderir ao boicote.

Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, o articulista Jorge Lucki, um dos maiores críticos de vinho do Brasil, bate forte no projeto de salvaguarda (clique aqui para ler). “Eventuais medidas favoráveis à indústria nacional vão contemplar em especial os vinhos europeus (australianos e neozelandeses também, mas são menos importantes no ranking de importações), isentando argentinos e chilenos, os verdadeiros concorrentes dos vinhos nacionais. Ainda que o Chile possa ser atingido pela implantação de um sistema de cotas, suas consequências são pouco significativas. Entre outros motivos porque o critério de cotas é mafioso, só os grandes conseguem entrar, exatamente aqueles cujos vinhos têm preço mais baixo. Ficam de fora os rótulos de pequenos produtores, os melhores e diferenciados, que são para apreciadores mais exigentes, os quais as vinícolas nacionais não alcançam”, escreveu Lucki.

Luís Henrique Zanini, da vinícola Vallontano, em entrevista por e-mail ao Wine Report expôs os motivos para posicionar-se contra a medida. “Acho muito estranho esta salvaguarda para a indústria brasileira, de uma hora para outra, ficamos defasados 50 anos em tecnologia e 100 em viticultura, quando na verdade ficamos defasados 1000 anos em inteligência. Não posso ser ingênuo em acreditar que o pequeno produtor se beneficiará com a salvaguarda, esta salvaguarda é só para ajudar as cooperativas e as grandes indústrias, dentre elas, algumas que recentemente fizeram aquisições, e agora querem mercado para escoar seus produtos. A salvaguarda é na verdade um ‘salva incompetência’”, afirma Zanini.

“Por outro lado o pequeno produtor, que mal tem dinheiro para cumprir as exigências que lhe são imputadas, e ficar em dia com seus tributos não para de se questionar: Por que o IBRAVIN não pede o SIMPLES para o pequeno produtor? Por que o IBRAVIN não pede o fim das normativas que limitam a produção artesanal? Por que o IBRAVIN não pede a dispensa do SELO FISCAL para quem produz até 50.000 litros de vinho? Por que o IBRAVIN não luta para baixar os tributos de nossos vinhos, ou cria um regime especial para os pequenos produtores? Isto seria a salvaguarda para a sobrevivência da diversidade do vinho brasileiro. Ao contrário disto, o IBRAVIN, que se diga de passagem não possui representantes de pequenas vinícolas, está se especializando em burocratizar o Setor. Estamos caminhando para a era da industrialização em massa, estamos dando aval ao vinho "commodities" em detrimento da diversidade. Nosso vinho está sendo conduzido para a morte, e terá apenas uma sobrevida nas gôndolas de supermercados de terceira categoria, isto é degradante. Não posso compactuar com isto, por isso eu sou radicalmente contra quaisquer iniciativa que não são discutidas de forma ampla e democrática, com todos os personagens envolvidos. As empresas que representam a minoria poderosa (que dominam as entidades que compõe o IBRAVIN) agora começam a sofrer retaliações por parte da mídia, dos jornalistas, dos formadores de opinião, dos editores de revistas, dos proprietários de restaurantes, dos supermercadistas, dos sommeliers, são estas as pessoas que trabalham pelo vinho brasileiro, e que estão indignadas com os rumos da politicagem do vinho no Brasil. Será que quem deve abrir a cabeça?”, acredita Zanini.

A salvaguarda é uma medida prevista em lei e cuja aplicação pode ser pedida caso um setor esteja sofrendo ou sob ameaça de um “grave prejuízo”. No acordo que trata sobre o assunto, entende-se por “prejuízo grave” a “deterioração geral significativa da situação de uma indústria nacional”. Curiosamente, poucos dias depois do início da investigação do pedido no MDIC, a vinícola Perini anunciou um investimento de R$ 10 milhões em equipamento e projetou um crescimento de 30% nas vendas ainda neste ano.

Ao que tudo indica, a polêmica ainda está longe de acabar. Ambas as partes apresentam números, argumentos e dados que validam uma ou outra teoria. Mas no capítulo imagem, já é possível elencar um perdedor: o vinho nacional. Com toda a antipatia despertada entre os consumidores pelo pedido de aplicação de salvaguardas, o que era um injustificado preconceito contra o vinho produzido no Brasil corre um sério risco de descambar para um ódio incontornável.



Para saber mais:

A circular número 9 do MDIC

O decreto que regulamenta as salvaguardas, Planalto:


Links sobre o tema:

Matéria na Revista Menu

Matéria na Isto É Dinheiro

Matéria na Veja

Entrevista com António Soares Franco na Isto É Dinheiro

Texto de Silvia Mascella Rosa, blog Vinho Verde e Amarelo

Texto de Guilherme Lopes Mair, blog Um Papo sobre Vinhos

Texto de Oscar Daudt, blog Eno Eventos

Texto de Bruno Agostini para O Globo


Salvaguardas na imprensa internacional:

Wine News – Itália

Jancis Robinson – Inglaterra

El Mundo Vino – Espanha

Revista Wine – Portugal

Infovini - Portugal

Club Darwin – Chile


Textos relevantes sobre o assunto:

Nota Oficial da Vinícola Salton:

A Vinícola Salton esclarece que são as entidades representativas do setor, Ibravin, Uvibra, Fecovinho e Sindivinho que estão à frente do movimento para salvaguardas dos vinhos nacionais. A Salton, compreendendo que estas medidas podem restringir o livre arbítrio de seus consumidores, encaminhou ao Ibravin um documento informando que não apoiará a causa. Reforçamos ainda que a Salton, uma empresa centenária e brasileira, se preocupa muito com seus clientes e consumidores e que busca constantemente o melhoramento de seus processos e produtos, por meio de investimentos em novas tecnologias e programas de qualidade, para concorrer, de forma justa, com produtos nacionais e importados.


Carta de Pedro Hermeto, dono do restaurante Aprazível:

Defendo a causa por convicção própria, por acreditar no setor vinícola brasileiro, por acreditar que essa medida insana contribuirá muito para arrasar o setor (que luta a duras penas para se manter de pé, especialmente as pequenas), por entender que a abertura do mercado é sempre economicamente sadia, qualquer que seja o setor (desde que não haja práticas abusivas por parte dos países exportadores), por entender que, no caso do vinho importado, já há, sim, uma proteção ao mercado nacional com os entraves burocráticos kafkianos e alta taxação (devemos multiplicar por quantas vezes o preço de um vinho lá de fora que chega pra nós aqui?), por, como consumidor, desejar ter acesso a bons vinhos de pequenos produtores espalhados pelo mundo, ter acesso à cultura e, finalmente, por desejar viver num país governado por gente com alguma visão de vanguarda. (Sou da teoria que o IBRAVIN em breve começará a fazer campanha para Hugo Chaves como presidente do Brasil.)

A salvaguarda e toda a pobre e manipulada justificativa que a acompanha representam um grande complexo de terceiro mundo dessa minoria verdadeiramente descomprometida com o setor.

Definitivamente não acredito que a imposição de salvaguardas à entrada do vinho importado fará o consumidor brasileiro frustrado passar a beber o vinho brasileiro, na falta de outro melhor. A imposição de salvaguardas contribuirá, sim, para a restrição da oferta e consequente diminuição do consumo de vinhos como um todo, desfazendo um trabalho de divulgação e expansão do conhecimento do público que vinha avançando pouco a pouco.

Quanto às medidas a serem supostamente adotadas pelo "setor" durante o período de vigência da salvaguarda, estas são risíveis e inverossímeis. Então quer dizer que fusões, aquisições e incorporações servirão para resolver a grave ameaça ao setor ora alardeada pelos grandes? Quer dizer que o aumento da quantidade de litros produzidos (com o aumento da produtividade nas novas áreas plantadas) dará conta do recado? Cadê o terroir nessa história toda? Cadê a identidade do vinho brasileiro, essa sim motivo de preocupação do setor? Não estamos falando de soja, feijão ou cobre. Não vejo no pobre texto do Ministério nenhuma referência a comprometimento com melhora de qualidade do líquido. E o curioso é que, nas minhas recentes viagens por aqui, noto que a qualidade média tem melhorado, que o pessoal tem acertado mais. A carta do Aprazível reflete essa percepção, pois aumentaram significativamente os rótulos oferecidos nos últimos anos.

Tivessem nossos amigos sulistas iniciado um movimento pela redução dos impostos incidentes na produção de vinho, pela desoneração fiscal do setor como um todo, ou proposto, por exemplo, a aprovação do SIMPLES para os pequenos, aí sim teríamos uma grande comunhão de interesses e todos nós estaríamos brigando pelo mesmo objetivo. Mas, em vez disso, o que eles fazem? Tratam de aprovar o selo fiscal, que onera ainda mais o setor e já dizimou 100 pequenos produtores! Dá pra entender o que esses caras querem? Ou precisa desenhar?


Declaração conjunta das vinícolas Adolfo Lona, 
Angheben, Cave Geisse e Vallontano:

As vinícolas ADOLFO LONA VINHOS E ESPUMANTES, ANGHEBEN VINHOS FINOS, CAVE GEISSE e VALLONTANO VINHOS NOBRES vêm a público se manifestar a respeito da polêmica da salvaguarda solicitada por algumas entidades do setor vinícola. Causou-nos estranheza a solicitação dessa medida já que no nosso entendimento os benefícios serão mais uma vez destinados às grandes indústrias, penalizando a diversidade da oferta e o consumidor. Por outro lado o pequeno produtor, que enfrenta hoje diversas dificuldades, não para de se questionar: Por que estas entidades não buscam o SIMPLES para o pequeno produtor? Por que não pedem o fim das normativas (IN05 etc..) que limitam e dificultam as atividades de pequenas vinícolas? Por que essas mesmas entidades impediram que entrasse em vigor a dispensa da aplicação do SELO FISCAL para quem produzisse até 20.000 litros de vinho (IN RFB N – 1.188/2011 DOU 1 DE 31/08/2011)? Por que não concentram seus esforços para baixar os tributos do vinho brasileiro ao invés de aumentar a taxa do importado? Por que para produzir vinho temos que seguir normas de produção de alimentos, mas na hora de pagarmos impostos somos produtores de bebida alcoólica?

Porém, o que parece responder a estas perguntas é a intenção de simplesmente burocratizar o setor e defender os interesses das grandes corporações. Estamos caminhando para a era da industrialização em massa, estamos dando aval ao vinho commodity em detrimento da diversidade brasileira. Isso é degradante. Não podemos compactuar com quaisquer iniciativas que não sejam discutidas de forma ampla e democrática, com todo o setor. Precisamos sim de uma salvaguarda para a sobrevivência da diversidade do vinho brasileiro. As empresas que representam a minoria poderosa já começam a sofrer retaliações por parte de jornalistas, formadores de opinião, proprietários de restaurantes, supermercadistas, sommeliers e consumidores. Algumas inclusive já estão mudando de opinião! Esperamos que ao contrário do acontecido com o selo fiscal, desta vez nossa voz seja ouvida. Uma frase de Ettore Scola pode sintetizar este momento: “Ho sempre preferito la finestra allo specchio”- "Sempre preferi a janela ao espelho.". Não está na hora de começarmos a mirar pela janela ao invés de nos centrarmos nos nossos umbigos? O mundo é vasto, vivemos um momento de encurtamento de distâncias, quedas de fronteiras e ao mesmo tempo de valorização das identidades locais e não será uma salvaguarda limitada e preconceituosa que resolverá as mazelas do vinho brasileiro!


Nota Oficial de Sérgio de Bastiani, da vinícola gaúcha Don Abel:

Como sócio-diretor da Vinícola Don Abel, minha posição é clara. A mim me interessa muito mais a redução de impostos ao consumidor do que qualquer outra medida, seja selo ou salvaguarda. Como por exemplo, o ICMS cobrado em muitos estados da federação onde a alíquota é de 25%, a ST (substituição tributária) o MVA (margem de valor agregado fora da realidade), apenas para citar alguns. A inclusão da indústria do vinho no SUPERSIMPLES ajudaria muito, em especial as pequenas e médias vinícolas brasileiras, o que aliás formam a maioria. Existe uma lei para reduzir impostos para as pequenas e médias empresas, onde somos excluídos juntos com outros segmentos como arma de fogo, cigarro, uísque. Classificar o vinho como bebida alcoólica é um erro e isso precisa ser corrigido urgentemente. Estamos lutando para ver acontecer.


Posição de Rodrigo Geisse, da Cave Geisse:

Somos absolutamente contrários a qualquer ferramenta que possa prejudicar o consumidor bem como a evolução do consumo de vinhos de qualidade no Brasil, que sem sombra de dúvida teve uma grande evolução nos últimos anos graças aos esforços realizados tanto pelos produtores brasileiros quanto pelos importadores que trabalham diariamente auxiliando na evolução dos consumidores de vinhos. Temos que agradecer que hoje no Brasil podemos encontrar uma diversidade enorme de estilos e regiões para apreciar e desenvolver nosso paladar, aprendendo a diferenciar o que cada região pode entregar de melhor com suas características e principalmente sua tipicidade. Sempre nos posicionamos contrários a qualquer barreira protecionista, afinal, o vinho é um dos produtos mais globalizados que existe e o apreciador quer poder tomar a maior diversidade de rótulos possível e aos melhores preços possíveis, e essa deve ser a verdadeira luta de nós produtores brasileiros! Melhorar nossa posição, não procurando meios para dificultar a entrada ou de tornar os vinhos importados mais caros ao consumidor, e sim, através de uma justa redução na pesada carga tributária imposta aos produtores brasileiros, pois afinal estamos falando de alimento e cultura!

Somente conseguiremos aumentar o bolo do consumo de vinhos e espumantes de qualidade no Brasil através de um trabalho conjunto somando as forças dos importadores e dos produtores brasileiros de qualidade em prol do aumento do consumo de vinhos no Brasil. Esta evolução tanto do consumidor como dos produtores nos auxiliarão para um melhor direcionamento e amadurecimento do setor, através do investimento em produtos que tenham melhor aceitação, com características singulares que conquistem o consumidor pela sua inquestionável qualidade e estilo tanto no mercado brasileiro como mundial.

O vinho sempre foi sinônimo de união, acredito que é somente questão de tempo até todos se darem conta de que estamos absolutamente no mesmo lado, e unindo forças teremos um excelente caminho para o bom desenvolvimento da cultura do vinho no Brasil.


Texto do enólogo Álvaro Escher:

“(...) Para os que já não sabem mais distinguir o relógio do mundo pelas das estações, aconselha-se adotar um cão. Se possível, numa madrugada fria, quando ventos gelados atravessam seus corpos de mármore e sangue.” 
Gilmar Marcílio

A ameaça à sobrevivência, poder-se-ia dizer, gera, no homem, a mais imediata e primeva das reações sob o estigma do medo e do perigo: a manifestação exacerbada do instinto atávico voltado para a defesa e preservação da espécie, dos interesses, das instituições, até mesmo da manutenção do inverossímil e do insensato, do extraordinário... Não poucas vezes, para não dizer sempre, a expressão dessas reações revela o inerente e perpétuo primitivismo agressivo da raça humana, apaziguado, cotidianamente, por traços de civilidade.

Seria, então, a sobrevivência a razão essencial que leva meia dúzia de grandes vinícolas a tramarem na criação do Selo Fiscal e da Salvaguarda? Rasgam-se estatutos (tanto quanto rasga-se a Constituição a todo o momento) e atropela-se a Democracia e os seus princípios para pleitear juntos a lobistas e a um governo -em tese popular e de esquerda- medidas de cunho coronelistas e oligárquicas, mais ao estilo de um Estado ditatorial e despótico.

Essas reivindicações encobrem absurdos, sejam de cunho econômico, político e mesmo social, sem esquecer aparentes contradições casualmente bem pensadas. Vejam quão profunda é a maldade.

Se num primeiro momento o Selo Fiscal sofreu oposição de centenas de vinícolas (incluindo a centena que fechou as portas) e as colocou do mesmo lado, as medidas protecionistas da Salvaguarda (aumento de impostos, cotas, rótulos em português) podem desarticular a incipiente organização das pequenas e médias vinícolas, incitando-as a percepção de ‘falsos benefícios’ com as barreiras restritivas.

Benefícios conjeturados na possibilidade de aumento do mercado para os vinhos nacionais em detrimento da redução da oferta de vinhos importados. Apostando-se na manutenção do mesmo tamanho do mercado consumidor. Falsos porque não tornam público as verdadeiras razões por trás das intenções, empreendendo ações as quais podem e, certamente, irão prejudicar todo setor. Falsos, pois ludibriam opositores com promessas de reestruturação e adaptabilidade das cantinas as novas exigências de competitividade. Como se até ontem essas empresas não eram consideradas de ponta tanto na competição quanto na tecnologia?

Falsos ainda, pois especula com o aumento de receita das vinícolas sem esclarecer que o protecionismo não atinge Uruguai e a Argentina, membros do MERCOSUL, e, possivelmente o Chile –com quem o Brasil mantém acordo bilateral, sendo que é destes países o maior montante de vinhos que entram no Brasil. Absurdamente falso, pois despreza o vinho enquanto substância e entidade para classifica-lo apenas como mercadoria. Como já dito exaustivamente, o vinho não é commodity, nem tampouco pode ser substituído um pelo outro como se fossem ‘iguais’ e o ‘mesmo’, ainda mais diante de consumidores que almejam transpor o patamar de influências e manipulações e atingir níveis de exigência crescentes em respeito aos seus próprios desejos e vontades, onde uma redução ‘artificial’ na ofertada ‘qualidade’ possa vir a ser entendida como um ultraje, quando não uma heresia.

Falso igualmente, porque fere a própria essência do sistema capitalista –do qual eles são os pétreos defensores- ao inibir a entrada dos pequenos produtores europeus, símbolos da manutenção da tradição e da qualidade e mestres em sublimaras idiossincrasias. Submetendo o setor a uma perigosa comodidade e impondo-o a flertar com o mau gosto, situação que pode gerar um contexto ainda mais negativo com essa inibição forçada da concorrência salutar. Ou será que o regime econômico capitalista não é mais o que está em vigor, substituído pelo MMA (Melhor Mesmo Aniquilar)?

Lamentavelmente falso, porque essas medidas podem representar um ‘tiro no próprio pé’ na medida em que o consumidor, desanimado, pode aderir ao boicote como forma de retaliação e consumir ainda menos vinhos nacionais ou mesmo migrar, ainda mais sua atenção e o paladar, para outras bebidas. Falso, redondamente falso, pois como agravante –conforme declaração de executivo do IBRAVIN- as grandes cantinas se endividaram e agora precisam pagar as contas. Pois bem, que paguem. Quando faturam nós não ganhamos nada com isso, a não ser as consequências negativas com a proliferação do mau gosto entre os consumidores, resultado da disseminação de suasbebidas ‘maravilhosas’. Quando se endividam, além de termos que ouvir seu choro e suas lamúrias ‘sinceras’, querem que a conta seja dividida, ou melhor, que seja paga na íntegra por nós outros. Não seria absurdo se os seus departamentos de marketing propagasse: “Você pediu e nós crescemos agora faça sua parte, beba LOOMI.” E estampado nos outdoors, dedo em riste, a figura seminua de alguma modelo da moda. Que interpretação infeliz dada aos fatos. Quem de sã consciência faria investimentos vultuosos na área vitivinícola, no Brasil, esperando que seus vinhos fossem preferidos a tantos outros famosos e melhores do velho continente? Pois, que façam um esforço, como os pequenos e médios fazem, para pagar as suas contas, e que estas sejam pagas honestamente como a nós nos é instituído escravisticamente. Desculpem-me pela limitada e vã inteligência, não consigo captar todas as nuanças e onde querem chegar com elas mas, uma coisa parece aclarar: Não seria a questão da Salvaguarda um assunto a ser averiguado -ao invés da SECEX-, pela Polícia Federal?

(P.S. As cervejarias um dia ainda agradecerão ao setor do vinho pelas medidas ‘inteligentes’).

Mas para não dizer que não falei de vinhos; o que distingue o vinho nacional do importado do velho mundo, mesmo antes da qualidade, é a forma como o ‘negócio’ é encarado na sua origem, na sua essência. Aqui o vinho é um empreendimento como qualquer outro, que visa lucros imediatos, enquanto que para os produtores sérios do velho mundo o vinho é a expressão dos mais recônditos valores do homem com a natureza. Para estes o dinheiro é visto como consequência do trabalho, da fruição harmoniosa e equilibrada com o entorno, para aqueles o dinheiro é a causa única, é o início de tudo, o fim e o meio.

Outro grande equívoco diz respeito à inferência e delegação de poderes. Enquanto na Europa, de uma forma geral, o governo legitima leis que valem para o setor quando estas são discutidas pelos segmentos diretamente ligados a área (viticultores, vinicultores, comerciantes, poetas, etc.), no Brasil quem dita as normas para o setor são jornalistas, advogados, empresários do ramo metal mecânico, de forja e usinagem, do setor elétrico e moveleiro, são os políticos intelectualóides insípidos e omissos, e os executivos profetas. Será que a falta de qualidade, na sua maioria, do vinho brasileiro é reflexo da ausência de cérebros pensantes dentro do setor? Não creio. Pessoas esclarecidas como Ciro Lilla , da Importadora Mistral, Danilo Cavagni, da Chandon do Brasil, Luís Henrique Zanini, da Vallontano, mesmos proprietários de restaurantes como Pedro Hermeto, do Aprazível, e Roberta Sudbrack deveriam ser consultados na matéria vinho. Mas não são. As decisões são tomadas pelo voto estanque, de cabresto, amorfo, não representativo das entidades inócuas submetidas ao controle do IBRAVIN. Digo apenas IBRAVIN, para não dizer IBRAVIN, apêndice da MIOLO. Ou será da RANDON? Ou de ambos? Quem dá mais?

Triste realidade de um país católico, que diz crer em Deus e ter fé. Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Mas e a fé no que está aí? Até quando acataremos a corrupção de forma passiva, como se legitima, justa e imutável?

“Dizer que as coisas não mudam não quer dizer que elas sejam imutáveis.” Bertolt Brecht

Mas porque tudo isso? Porque todas essas reivindicações de uma pequena parcela do setor?

“(...) Em nós há apenas o sonho da totalidade, comunhão absoluta que será sempre projeto, possibilidade (...)” 
Gilmar Marcílio

Voltamos a origem do problema, exaustivamente debatida: a desorganização do setor que não se une para exigir redução de impostos, para difundir a ideia do vinho como alimento, ao ainda para cobrar a instituição do Simples.

Diante de tamanha desarticulação e demagogia não é estranho ver entidades destinadas a atender os interesses da maioria, serem manipuladas como se privadas fossem, beneficiando parcelas seletivas e suas ideologias esdrúxulas. Há culpados? Ou somos, todos, ingênuos inocentes?

Será que pensar no vinho apenas enquanto viés temporal, contingente, como mercadoria efêmera e descartável, diet, light, vai ajudar a saldar as dívidas dos proponentes da Salvaguarda, livra-los da extinção e ampliar lhes a sobrevida?

Os disparates de um pequeno grupo de espírito paraplégico, produtores de vinhos de qualidade capenga, mais afeitos a guerra do que a generosidade, cerceados por farpas e entrincheirados na sua verdade absoluta, clamam aos ventos de todas as eras para que seu brado retumbante ecoe aos quatro cantos dessa nação de berço esplêndido: dai-nos a sobrevivência; dai-nos a Salvaguarda; Salvaguarda e algemas.

É nisso senhores que reside o maior dos enganos da humanidade. A sobrevivência, ao contrário do que parece ou supomos saber, não se configura pela imediata proteção do alimento tangível. Quando uma criança vem ao mundo não é o seio e o leite o que ela primeiro necessita e busca no corpo da mãe amada. Basta-lhe, intrinsecamente, no primordial sopro de vida, apenas o acalanto de um simples abraço, a troca de calor mútuo dos corpos em êxtase, o bater uníssono dos corações transbordantes de felicidade plena, dádiva do dom de gerar e ser gerado. Basta-lhe, tão somente, o choro conjunto de alegria a perpassar cada orifício, cada molécula, cada átomo, e tocará sua alma e despertará seu espírito, lapso de tempo insignificante e eterno que forjará a integridade de seu ente ontológico. A partir de então será, a um só tempo, unidade e o todo, centelha do amor imaculado.

O vinho também é simplesmente isso, basta querer ver, ouvir e sentir. Façamos um esforço, tente, novamente, tente outra vez. De resto as melancias se ajeitam como andar da carruagem...

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